
domingo, 31 de outubro de 2010
Cálice
Cálice
Chico Buarque
Composição: Chico Buarque e Gilberto Gil
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguem me esqueça

O afinco com que Marx e Schumpeter, por razões muito diferentes, anunciaram o desaparecimento do capitalismo em beneficio do socialismo é um perfeito exemplo de como a análise científica pode se tranformar em ato de fé. [...]
Ora, após ter consagrado a primeira parte de Capitalismo, socialismo e democracia a denunciar as contradições e as ilusões do marxismo, Schumpeter também conclui seu último livro com um exercício de prófetismo igualmente temerário.
Para Marx, embora sem data definida, o fim do capitalismo estava próximo, visto que esperava a ajuda da história, ou seja, a revolução; em todo o caso, era preciso olhar para além do século [...]. Em compensação, para Schumpeter, tão certo quanto Marx do fim do capitalismo, o prazo estava muito distante, tanto mais indeterminado que o golpe fatal devia vir não do exterior, mas do próprio seio do sistema [...]. Para Schumpeter, finalmente, a doença entorpecedora que deve levar o capitalismo à morte não concerne às estruturas, nem aos processos econômicos, mas à atmosfera de hostilidade que o cerca [...].
A atmosfera geral de hostilidade que permeia o sistema capitalista explica que os poderes públicos hesitem, ou até deixam de reconhecer as exigências inerentes ao bom funcionamento do sistema mas, por si mesma, não seria suficiente para abater a fortaleza. Para incitar as massas, os partidos, os sindicatos, é preciso um demiurgo, cujo interesse é precisamente contribuir para o descrédito de todo o sistema, maldizê-lo e combatê-lo. Esse demiurgo, diz Schumpeter, é constituído de um grupo social que [...] facilmente nós os definiríamos em função da educação superior que receberam, ainda que a espécie não englobe todos aqueles que se beneficiaram dessa formação (mas todo aquele que passou por ela é um desses demiurgos em potencial). Nós os encontramos particularmente nas profissões liberais: são jornalistas e professores, mas também médicos e advogados, "quando tratam através da fala e da escrita de assuntos estranhos à sua competência".
Esses demiurgos, incansáveis coveiros do capitalismo, são intelectuais que manejam, diz Schumpeter, a palavra escrita ou falada, não assumem nenhuma responsabilidade no que concerne às questões práticas, não possuem nenhum dos conhecimentos de primeira mão que apenas a experiência fornece, têm uma atitude crítica determinada ao mesmo tempo por sua posição de observadores (que é, na maioria dos casos, a de outsiders) e devido ao fato de que sua melhor oportunidade de se impor se deve aos embaraços que suscitam ou poderiam suscitar. Como vemos, retrato pouco amável: retóricos, sofistas, filósofos [...]. Mas, sejamos justos: nem todos os intelectuais pertencem fatalmente ao clã desses demiurgos [...].
É nesse ponto que a análise de Schumpeter mostra-se premonitória. O próprio sucesso do capitalismo, que estimula e expande a educação superior, acaba por provocar uma "superprodução de intelectuais" sem indulgência para o sistema. Um número sempre maior de diplomados não encontra as ocupações profissionais às quais seus estudos lhes permitiam aspirar, sem falar daqueles que, apesar de seus estudos, conhecem o desemprego. Quanto mais os diplomados de ensino superior se propagam, tanto mais se desvalorizam, e mais as frustrações se multiplicam e aumentam. Os recém-formados "incham os quadros dos intelectuais no sentido estrito do termo, ou seja, aqueles sem vínculos profissionais, cujo número em seguida cresce desmedidamente. Eles entram nesse exército com uma mentalidade essencialmente insatisfeita. A insatisfação gera o ressentimento" [...]. Para Marx, o exército de reserva de desempregados devia contribuir, reforçando o partido dos proletários, ao desabamento da fortaleza capitalista. Para Schumpeter, os burgueses e pequenos-burgueses que passaram pelo ensino superior constituem o exército de reserva dos novos proletários, que vão contribuir para a "autodestruição do capitalismo". Resumindo, esses intelectuais estão reunidos por "um interesse coletivo que modela uma atitude coletiva": sua hostilidade em relação ao capitalismo, diz Schumpeter, se fundamenta no ressentimento, e não na indignação provocada pelo espetáculo de explorações vergonhosas. Após terem dado voz, teorias e slogans ao movimento operário, nossos demiurgos vão se imiscuir nas administrações e empresas para mobilizar as frustrações das novas classes médias. Esse trabalho de solapamento precipita o fim dos empresários e da inovação. "Como alvo da crescente hostilidade de seu ambiente e das práticas legislativas, administrativas e judiciais geradas por essa hostilidade, os empresários acabarão por deixar de preencher suas funções: seus objetivos normais se tornarão fúteis" [...].
É difícil contestar esse diagnóstico acerca das frustrações decorrentes das universidades de massa, da proliferação dos formados, da desvalorização dos títulos, cuja obtenção valia, às gerações anteriores à Segunda Guerra Mundial, uma promoção social assegurada, um passaporte de burguesia, uma garantia de poder e de patrimônio. O capítulo XIII do Capitalismo, socialismo e democracia é, seguramente, aquele que a história menos desmentiu, ou pelo menos aquele cujos temas encontram hoje mais eco na crítica das complacências ou da vulnerabilidade das sociedades liberais. No quadro dos fatores que devem cavar o túmulo do capitalismo, Schumpeter acrescenta à proletarização do ensino superior [...].
Schumpeter, entretanto, se engana a respeito do desemprego dos intelectuais. Todas as estatísticas mostram que, em todos os países industrializados, a categoria dos diplomados de ensino superior escapa mais facilmente do desemprego ou encontra mais facilmente trabalho do que todas as outras categorias. Ele tem razão ao salientar que nem todos esses diplomados exercerão necessariamente as profissões às quais se destinavam quando começaram os estudos, mas se engana ao ver neles um exército homogêneo obstinado em querer a morte do capitalismo. Os frustrados, como sugere Brettecher, pretendem, antes, tirar partido do sistema que suprimi-lo. Seguramente, a sociedade de consumo, a elevação do nível de vida e a simultaneidade das experiências contraditórias apresentadas pelas mídias aumentam o número de frustrações, assim como o número de frustrados; porém, o número de pessoas cujo crescimento econômico e cujo progresso tecnológico satisfazem as necessidades, as aspirações e as fantasias cresce ainda mais [...].
Jean-Jacques Salomon. Morte e ressurreição do capitalismo: a propósito de Schumpeter.
Trechos de um texto/capítulo do livro Les ruses de la raison - technologie, capitalisme, démocratie. Tradução de Belkiss Rabello. Revisão de Alfredo Bosi.
A servidão moderna

“A servidão moderna é uma escravidão voluntária, consentida pela multidão de escravos que se arrastam pela face da terra. Eles mesmos compram as mercadorias que os escravizam cada vez mais. Eles mesmos procuram um trabalho cada vez mais alienante que lhes é dado, se demonstram estar suficientemente domados. Eles mesmos escolhem os mestres a quem deverão servir. Para que esta tragédia absurda possa ter lugar, foi necessário tirar desta classe a consciência de sua exploração e de sua alienação. Aí está a estranha modernidade da nossa época. Contrariamente aos escravos da antiguidade, aos servos da Idade média e aos operários das primeiras revoluções industriais, estamos hoje em dia frente a uma classe totalmente escravizada, só que não sabe, ou melhor, não quer saber. Eles ignoram o que deveria ser a única e legítima reação dos explorados. Aceitam sem discutir a vida lamentável que se planejou para eles. A renúncia e a resignação são a fonte; de sua desgraça.”
(Direção: Jean-François Brient. França-Colômbia, 2009, 52min. Sitio oficial: www.delaservitudemoderne.org/. Disponível no YouTube: 1. 2. 3. 4. 5)
Pra Ti Minha Mãe!
Ah, esse aroma de Favos de teu colo,
incenso em minha infância...
A Grande Fada transforma em riso o grito
descoberta do mundo
Mãe é flor na sala,
lençóis limpos e mesa pronta.
A Mãe batiza os objetos.
A jarra de água fresca, as toalhas, o termômetro.
A Mãe espera até que a aurora
entregue o pão e o leite no portal.
Eis a Mãe, com seus presságios e sobremesas...
Eis o Filho, guardião de uma esperança de amor
protegida à sete chaves
lá, onde residem as mais cálidas lembranças
e os mais ásperos segredos...”
Ah, esse aroma de Favos de teu colo,
incenso em minha infância...
A Grande Fada transforma em riso o grito
descoberta do mundo
Mãe é flor na sala,
lençóis limpos e mesa pronta.
A Mãe batiza os objetos.
A jarra de água fresca, as toalhas, o termômetro.
A Mãe espera até que a aurora
entregue o pão e o leite no portal.
Eis a Mãe, com seus presságios e sobremesas...
Eis o Filho, guardião de uma esperança de amor
protegida à sete chaves
lá, onde residem as mais cálidas lembranças
e os mais ásperos segredos...”
“A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada.”
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará
Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento
A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto
Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento
E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada.”

Pai, afasta de mim esse cálice, Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca resta o peito, silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa, atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, prá qualquer momento, ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda, de muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta, essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo, de que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado, quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça, minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel, me embriagar até que alguém me esqueça
Pai, afasta de mim esse cálice, Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca resta o peito, silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta força bruta
Cálice
Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa, atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, prá qualquer momento, ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda, de muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta, essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo, de que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado, quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça, minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel, me embriagar até que alguém me esqueça
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
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